sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022
domingo, 13 de fevereiro de 2022
Uma vez que em boa verdade os homens apenas se interessam pela sua opinião própria, qualquer indivíduo que queira apresentar uma dada opinião trata de olhar para um lado e para o outro à procura de meios que lhe permitam dar força à posição, sua ou alheia, que defende.
As pessoas servem-se da verdade quando ela lhes é útil, mas recorrem com retórica paixão à falsidade logo que se lhes depara o momento em que a podem usar para produzir a ilusão de um meio-argumento e dar assim, com uma manobra de diversão, a aparência de unificar aquilo que se apresenta como fragmentário.A princípio, quando me apercebia de tais situações, ficava incomodado, depois passei a ficar perturbado, mas tudo isso suscita-me hoje um prazer malicioso. E prometi a mim mesmo que nunca mais volto a pôr a descoberto esse tipo de procedimentos.
Johann Wolfgang von Goethe, in "Máximas e Reflexões"
sábado, 12 de fevereiro de 2022
A volúpia carnal é uma experiência dos sentidos, análoga ao simples olhar ou à simples sensação com que um belo fruto enche a língua. É uma grande experiência sem fim que nos é dada; um conhecimento do mundo, a plenitude e o esplendor de todo o saber. O mal não é que nós a aceitemos; o mal consiste em quase todos abusarem dessa experiência, malbaratando-a, fazendo dela um mero estímulo para os momentos cansados da sua existência.
Rainer, Rilke, in 'Cartas a um Jovem Poeta'
sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022
As suspeitas são entre os pensamentos o que os morcegos são entre os pássaros; voam sempre ao crepúsculo. Certamente, devem ser reprimidos, ou pelo menos bem vigiados, porque ofuscam o espírito. As suspeitas afastam-nos dos amigos e vão de encontro aos nossos negócios, que afastam do caminho normal e direito. As suspeitas impelem os reis à tirania, os maridos ao ciúme, os sábios à irresolução e à melancolia. São fraquezas não do coração, mas do cérebro, porque se alojam nos carácteres mais intrépidos, como no exemplo de Henrique VII de Inglaterra, que, entre os homens, foi também o mais suspeitoso e também o mais intrépido. As suspeitas fazem muito mal a estes homens. Nas outras pessoas, as suspeitas só são admitidas depois de exame à sua verosimilhança, mas nas pessoas timoratas elas rapidamente adquirem fundamento. O que leva o homem a suspeitar muito é o saber pouco; por isso os homens deveriam dar remédio às suspeitas procurando saber mais, em vez de se deixarem sufocar por elas.
Francis Bacon, in 'Ensaios'
quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022
quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022
Aquele que muito interrogar muito aprenderá também, muito contentará também, especialmente se adaptar as suas perguntas aos conhecimentos daqueles que lhe podem responder, pois assim lhes dará ocasião de se comprazerem a falar, e ele próprio continuará a ganhar conhecimentos; se por vezes fingirdes ignorar o que consta que sabeis, para outra vez passareis por saber o que ignorais. Falar acerca de si próprio não é bom que se faça com frequência, e há só um caso em que um homem consegue fazer com graça o seu próprio elogio: é quando louva uma virtude que pretende ter. Discrição na conversa vale muito mais do que eloquência, e mais vale falar singelamente com o interlocutor, do que exprimir-se em palavras cadenciadas e altissonantes. Uma conversa bem conduzida, mas sem uma boa réplica do interlocutor, torna-se muito vagarosa; uma boa réplica que não seja seguida por um bom discurso é de manifesta frivolidade. Usar de muitos circunlóquios antes de abordar o tema é fastidioso; não usar alguns significa demasiada rudeza.
Francis Bacon, in 'Ensaios'
terça-feira, 8 de fevereiro de 2022
segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022
Meu caro leitor!
Se não tens tempo nem oportunidade para consagrar uma dezena de anos da tua vida a uma viagem em volta do mundo para observar tudo o que um circunavegador pode aprender; se te falta, por não teres estudado por muito tempo as línguas estrangeiras, os dons e os meios de te iniciar nas mentalidades diversas dos povos que se revelam aos cientistas; se não pensas em descobrir um novo sistema astronómico que suprima o de Copérnico, bem como o de Ptolomeu - então, casa-te; e mesmo que tenhas tempo para viajar, dons para os estudos e a esperança de fazer descobertas, casa-te do mesmo modo. Tu não te arrependerás, ainda que isso te impeça de conheceres todo o Globo terrestre, de te exprimires em muitas línguas e de compreenderes o espaço celeste; pois o casamento é e continuará a ser a viagem da descoberta mais importante que o homem pode empreender; qualquer outro conhecimento da vida, comparado ao de um homem casado, é superficial, pois ele e só ele penetrou verdadeiramente na existência.Emmanuel Kant, in 'Considerações sobre o Casamento em Resposta a Objecções'
sábado, 5 de fevereiro de 2022
Não ajas contra tua vontade nem contra a comunidade, sem prévio exame nem relutantemente; não exprimas teu pensamento de maneira engenhosa ou com rodeios; não sejas loquaz nem demasiado ativo a ponto de seres indiscreto. Além disso, permite que o deus7 que existe em ti te comande e encontre em ti um homem,8 um velho, um cidadão, um romano, um comandante que a si mesmo atribui seu posto, uma pessoa que se constituiu como alguém a esperar tão só, por assim dizer, o toque de retirada para partir prontamente desta vida, e que para isso não precisa de um juramento nem de algum ser humano que dê um testemunho. Mantém a alegria e a autossuficiência, dispensando os serviços externos bem como aquela tranquilidade dos outros. É necessário, portanto, ser correto, não ser corrigido.
sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022
quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022
Fixa, a partir de agora, um caráter e um padrão para ti
quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022
terça-feira, 1 de fevereiro de 2022
Vivestes como se fósseis viver para sempre, nunca vos ocorreu que sois frágeis, não notais quanto tempo já passou; vós o perdeis, como se ele fosse farto e abundante, ao passo que aquele mesmo
segunda-feira, 31 de janeiro de 2022
sábado, 29 de janeiro de 2022
sábado, 22 de janeiro de 2022
sexta-feira, 21 de janeiro de 2022
terça-feira, 11 de janeiro de 2022
sexta-feira, 19 de novembro de 2021
O que mais me intriga e dói na nossa morte, como vemos na dos outros, é que nada se perturba com ela na vida normal do mundo. Mesmo que sejas uma personagem histórica, tudo entra de novo na rotina como se nem tivesses existido. O que mais podem fazer-te é tomar nota do acontecimento e recomeçar. Quando morre um teu amigo ou conhecido, a vida continua natural como se quem existisse para morrer fosses só tu. Porque tudo converge para ti, em quem tudo existe, e assim te inquieta a certeza de que o universo morrerá contigo. Mas não morre. Repara no que acontece com a morte dos outros e ficas a saber que o universo se está nas tintas para que morras ou não. E isso é que é incompreensível - morrer tudo com a tua morte e tudo ficar perfeitamente na mesma. Tudo isto tem significado para o teu presente. Mas recua duzentos anos e verás que nada disto tem já significado.
Vergílio Ferreira, in 'Escrever'
sexta-feira, 29 de outubro de 2021
Aquilo em que se tem mais vaidade é o corpo. Mesmo que aleijado, há sempre um pormenor que nos envaidece. Compô-lo. Arranjá-lo. O careca puxa o cabelo desde o cachaço ou do olho do cú para tapar a degradação. O marreco faz peito. O espelho é para todos o grande dialogante. Passa-se a uma vitrina e olha-se de soslaio a ver como se vai. Uma mulher perfeita (e um homem) não inveja o intelectual, o artista. O inverso é que é. Muitas mulheres (e homens) cultivam a excepcionalidade do seu espírito ou engenho por complexo ou vingança. Quando se não tem já vaidade no corpo, está-se no fim. Mas mesmo num leito de morte nos queremos «compostos». «Não me descomponhas» — disse a marquesa de Távora ao carrasco, uns momentos antes de ser decapitada. Tomam-se providências para como se há-de ir no caixão. A degradação do corpo é a última coisa que se aceita.
Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente 1'
segunda-feira, 18 de outubro de 2021
Como é por dentro outra pessoa?
Quem é que o saberá sonhar?
A alma de outrem é outro universo
Com que não há comunicação possível,
Com que não há verdadeiro entendimento.
Nada sabemos da alma
Senão da nossa;
As dos outros são olhares,
São gestos, são palavras,
Com a suposição
De qualquer semelhança no fundo.
domingo, 17 de outubro de 2021
quinta-feira, 14 de outubro de 2021
segunda-feira, 4 de outubro de 2021
quinta-feira, 30 de setembro de 2021
O que torna infeliz a primeira metade da vida, que apresenta tantas vantagens em relação à segunda, é a busca da felicidade, com base no firme pressuposto de que esta deva ser encontrável na vida: o resultado são esperanças e insatisfações continuamente frustradas. Visualizamos imagens enganosas de uma felicidade sonhada e indeterminada, entre figuras escolhidas por capricho, e procuramos em vão o seu arquétipo.
Na segunda metade da vida, a preocupação com a infelicidade toma o lugar da aspiração sempre insatisfeita à felicidade; no entanto, encontrar um remédio para tal problema é objectivamente possível. De facto, a essa altura já estamos finalmente curados do pressuposto há pouco mencionado e buscamos apenas tranquilidade e a maior ausência de dor possível, o que pode ocasionar um estado consideravelmente mais satisfatório do que o primeiro, visto que ele deseja algo atingível, e que prevalece sobre as privações que caracterizam a segunda metade da vida.Arthur Schopenhauer, in "A Arte de Ser Feliz"
terça-feira, 28 de setembro de 2021
segunda-feira, 27 de setembro de 2021
É realmente inacreditável como a vida da maioria dos homens flui de maneira insignificante e fútil, quando vista externamente, e quão apática e sem sentido pode parecer interiormente. As quatro idades da vida que levam à morte são feitas de ânsia e martírio extenuados, além de uma vertigem ilusória, acompanhada por uma série de pensamentos triviais. Assemelham-se ao mecanismo de um relógio, que é colocado em movimento e gira, sem saber por quê. E toda a vez que um homem é gerado e nasce, dá-se novamente corda ao relógio da vida humana, para então repetir a mesma cantilena pela enésima vez, frase por frase, compasso por compasso, com variações insignificantes.
Arthur Schopenhauer, in "A Arte de Insultar"
segunda-feira, 13 de setembro de 2021
Para saberes o que uma pessoa pensa, de facto, da tua política, pede a um homem de confiança que exprima diante dela as tuas próprias opiniões, fazendo-as passar por suas. Ou então, lê um texto que tu mesmo redigiste, mas dizendo que provém de outra fonte, e observa a sua reacção.
Muitas vezes a amizade torna-nos demasiado benevolentes, confundindo a nossa clareza de ideias. Não que os nossos amigos não sejam sinceros quando nos elogiam ou nos encorajam nos nossos empreendimentos, mas a sua boa vontade está muito longe do verdadeiro juízo, que consiste em felicitar o interessado depois de nos termos informado a seu respeito e ter estudado em pormenor as suas acções e os seus métodos.Jules Mazarin, in 'Breviário dos Políticos'
quarta-feira, 18 de agosto de 2021
O único modo de entreter algumas pessoas é escutá-las.
Hubbard , Kim
sexta-feira, 13 de agosto de 2021
A honra não consiste na opinião dos outros sobre o nosso valor, mas unicamente nas exteriorizações dessa opinião, pouco importando se a opinião externada de facto existe ou não, muito menos se ela tem fundamento. Por conseguinte, os outros podem nutrir a pior opinião a nosso respeito, por conta do nosso modo de vida, e podem desprezar-nos como bem entenderem; durante o tempo em que ninguém se atrever a expressá-la em voz alta, ela não prejudicará em nada a nossa honra. Mas, ao contrário, bastará que apenas um indivíduo - seja ele o pior e mais ignorante - exprima o seu desprezo por nós para que logo a nossa honra seja ferida e até perdida para sempre, caso não a reparemos.
quarta-feira, 11 de agosto de 2021
Existe no mundo apenas um ser mentiroso: o homem. Todos os outros seres são verdadeiros e sinceros, pois mostram-se abertamente como são e manifestam o que sentem. Uma expressão emblemática ou alegórica dessa diferença fundamental é o facto de que todos os animais andam com o seu aspecto natural, o que contribui bastante para a impressão agradável que se tem ao vê-los; especialmente quando se trata de animais livres, tal visão enche o meu coração de alegria. Em contrapartida, devido ao seu vestuário, o ser humano tornou-se uma caricatura, um monstro; o simples facto de vê-lo é ja algo de repugnante, que se destaca até pelo branco da sua pele, tão natural a ele, e pelas consequências repulsivas da sua alimentação à base de carne, que vai contra a natureza, bem como das bebidas alcoólicas, do tabaco, dos excessos e das doenças. Ele surge como uma mácula da natureza!
Arthur Schopenhauer, in "A Arte de Insultar"
sábado, 31 de julho de 2021
Um homem louco é aquele cuja maneira de pensar e agir não se coaduna com a maioria dos seus contemporâneos. A sanidade mental é uma questão de estatística. Aquilo que a maioria dos Homens faz em qualquer dado lugar e período é a coisa ajuizada e normal a fazer. Esta é a definição de sanidade mental na qual baseamos a nossa prática social. Para nós, aqui e agora, são muitos os de mentalidade sã e poucos os loucos. Mas os julgamentos, aqui e agora, são por sua natureza provisórios e relativos. O que nos parece sanidade mental, a nós, porque é o comportamento de muitos, pode parecer, sub specie oeternitalis, uma loucura. Nem é preciso invocar a eternidade como testemunho. A História é suficiente. A maioria auto-intitulada de mentalmente sã, em qualquer dado momento, pode parecer ao historiador, que estudou os pensamentos e acções de inumeráveis mortos, uma escassa mão-cheia de lunáticos. Considerando o assunto de outro ponto de vista, o psicólogo pode chegar à mesma conclusão. Ele sabe que a mente consiste de tais e tais elementos, que existem e devem ser tidos em conta. Se um homem tenta viver como se certos destes elementos constituintes do seu ser não existissem, está a tentar viver, num sentido psicológico absoluto, anormalmente. Está a tentar ser louco; e tentar ser louco é insânia.
Aplicando estes dois testes, o do historiador e o do psicólogo, à maioria mentalmente sã do Ocidente contemporâneo, que verificamos? Verificamos que os ideais e a filosofia da vida agora geralmente aceites são totalmente diferentes dos ideais e da filosofia aceite em quase todas as outras épocas. O Sr. Buck e os milhões por quem ele fala estão, esmagadoramente, em minoria. Os incontáveis mortos preferem a sentença a seu respeito: estão loucos. Os psicólogos confirmam o seu veredicto. O êxito – «a deusa-cadela, Êxito» na frase de William James – exige estranhos sacrifícios daqueles que a adoram. Nada menos do que automutilação espiritual pode obter os seus favores. O homem coordenado para o êxito é um homem que foi forçado a deixar metade do seu espírito fora da sua personalidade. E se ele aceitar os ideais e a filosofia da vida que a deusa-cadela tem para oferecer, achar-se-á condenado, ou a uma estrénua irreflexão ou a um cinismo poeirento e descolorido. Nascido potencialmente são, ele aprende a sua loucura. “Porque todo o Homem”, como Sancho Pança observou, “é como o céu o fez, e algumas vezes muito pior do que isso” – algumas vezes, também, muito melhor; depende, em parte, dos seus próprios esforços, em parte das tradições, das crenças, dos códigos, da filosofia da vida que acontece ser corrente na sociedade em que ele nasceu. Onde esta herança social é uma loucura, o indivíduo naturalmente mais normal está moldado à semelhança de um louco. Em relação à sociedade em que vive, ele é, sem dúvida, normal, porque se parece com a maioria dos seus pares. Mas eles são todos, falando em absoluto, conjuntamente loucos.A Natureza permanece inalterável, quaisquer que sejam os esforços conscientes feitos para a deformar. Os Homens podem negar a existência de uma parte do seu próprio espírito; mas o que é negado não é por isso destruído. Os elementos banidos vingam-se nos indivíduos, nas sociedades inteiras. Uma coisa apenas é absolutamente certa quanto ao futuro: que as nossas sociedades ocidentais não se manterão por muito tempo no seu presente estado. Ideais loucos e uma filosofia lunática da vida não são as melhores garantias de sobrevivência.
Aldous Huxley, in "Sobre a Democracia e Outros Estudos"
quinta-feira, 29 de julho de 2021
Inveja Justa e Injusta
Quando a fortuna envia a alguém bens de que ele é verdadeiramente indigno, e a inveja só é excitada em nós porque amando naturalmente a justiça ficamos contrariados que ela não seja observada na distribuição desses bens, trata-se de um zelo que pode ser desculpável; principalmente quando o bem que invejamos de outros é de tal natureza que pode converter-se em mal nas mãos deles, como se for algum cargo ou ofício em cujo exercício eles possam comportar-se mal.
Mas há poucos que sejam tão justos, e tão generosos a ponto de não ter ódio por aqueles que os precederam na obtenção de um bem que não é comunicável a várias pessoas e que eles haviam desejado para si mesmos, embora os que os obtiveram sejam tanto ou mais merecedores. E o que habitualmente é mais invejado é a glória, pois embora a dos outros não impeça que possamos almejá-la, no entanto às vezes torna o seu acesso mais difícil e encarece-lhe o valor.
René Descartes, in 'As Paixões da Alma'
quarta-feira, 28 de julho de 2021
domingo, 6 de junho de 2021
quinta-feira, 27 de maio de 2021
domingo, 23 de maio de 2021
Nenhum caminho é mais errado para a felicidade do que a vida no grande mundo, às fartas e em festanças (high life), pois, quando tentamos transformar a nossa miserável existência numa sucessão de alegrias, gozos e prazeres, não conseguimos evitar a desilusão; muito menos o seu acompanhamento obrigatório, que são as mentiras recíprocas.
Assim como o nosso corpo está envolto em vestes, o nosso espírito está revestido de mentiras. Os nossos dizeres, as nossas acções, todo o nosso ser é mentiroso, e só por meio desse invólucro pode-se, por vezes, adivinhar a nossa verdadeira mentalidade, assim como pelas vestes se adivinha a figura do corpo.Antes de mais nada, toda a sociedade exige necessariamente uma acomodação mútua e uma temperatura; por conseguinte, quanto mais numerosa, tanto mais enfadonha será. Cada um só pode ser ele mesmo, inteiramente, apenas pelo tempo em que estiver sozinho. Quem, portanto, não ama a solidão, também não ama a liberdade: apenas quando se está só é que se está livre.
A coerção é a companheira inseparável de toda a sociedade, que ainda exige sacrifícios tão mais difíceis quanto mais significativa for a própria individualidade. Dessa forma, cada um fugirá, suportará ou amará a solidão na proporção exacta do valor da sua personalidade. Pois, na solidão, o indivíduo mesquinho sente toda a sua mesquinhez, o grande espírito, toda a sua grandeza; numa palavra: cada um sente o que é.
Ademais, quanto mais elevada for a posição de uma pessoa na escala hierárquica da natureza, tanto mais solitária será, essencial e inevitavelmente. Assim, é um benefício para ela se à solidão física corresponder a intelectual. Caso contrário, a vizinhança frequente de seres heterogéneos causa um efeito incómodo e até mesmo adverso sobre ela, ao roubar-lhe seu «eu» sem nada lhe oferecer em troca. Além disso, enquanto a natureza estabeleceu entre os homens a mais ampla diversidade nos domínios moral e intelectual, a sociedade, não tomando conhecimento disso, iguala todos os seres ou, antes, coloca no lugar da diversidade as diferenças e degraus artificiais de classe e posição, com frequência diametralmente opostos à escala hierárquica da natureza.
Nesse arranjo, aqueles que a natureza situou em baixo encontram-se em óptima situação; os poucos, entretanto, que ela colocou em cima, saem em desvantagem. Como consequência, estes costumam esquivar-se da sociedade, na qual, ao tornar-se numerosa, a vulgaridade domina.
Arthur Schopenhauer, in 'Aforismos para a Sabedoria de Vida'
quarta-feira, 19 de maio de 2021
Todos os dias os encontro. Evito-os. Às vezes sou obrigado a escutá-los, a dialogar com eles. Já não me confrangem. Contam-me vitórias. Querem vencer, querem, convencidos, convencer. Vençam lá, à vontade. Sobretudo, vençam sem me chatear.
Mas também os aturo por escrito. No livro, no jornal. Romancistas, poetas, ensaístas, críticos (de cinema, meu Deus, de cinema!). Será que voltaram os polígrafos? Voltaram, pois, e em força.Convencidos da vida há-os, afinal, por toda a parte, em todos (e por todos) os meios. Eles estão convictos da sua excelência, da excelência das suas obras e manobras (as obras justificam as manobras), de que podem ser, se ainda não são, os melhores, os mais em vista.
Praticam, uns com os outros, nada de genuinamente indecente: apenas um espelhismo lisonjeador. Além de espectadores, o convencido precisa de irmãos-em-convencimento. Isolado, através de quem poderia continuar a convencer-se, a propagar-se?
(...) No corre-que-corre, o convencido da vida não é um vaidoso à toa. Ele é o vaidoso que quer extrair da sua vaidade, que nunca é gratuita, todo o rendimento possível. Nos negócios, na política, no jornalismo, nas letras, nas artes. É tão capaz de aceitar uma condecoração como de rejeitá-la. Depende do que, na circunstância, ele julgar que lhe será mais útil.
Para quem o sabe observar, para quem tem a pachorra de lhe seguir a trajectória, o convencido da vida farta-se de cometer «gaffes». Não importa: o caminho é em frente e para cima. A pior das «gaffes», além daquelas, apenas formais, que decorrem da sua ignorância de certos sinais ou etiquetas de casta, de classe, e que o inculcam como um arrivista, um «parvenu», a pior das «gaffes» é o convencido da vida julgar-se mais hábil manobrador do que qualquer outro.
Daí que não seja tão raro como isso ver um convencido da vida fazer plof e descer, liquidado, para as profundas. Se tiver raça, pôr-se-á, imediatamente, a «refaire surface». Cá chegado, ei-lo a retomar, metamorfoseado ou não, o seu propósito de se convencer da vida - da sua, claro - para de novo ser, com toda a plenitude, o convencido da vida que, afinal... sempre foi.
Alexandre O'Neill, in "Uma Coisa em Forma de Assim"
segunda-feira, 17 de maio de 2021
O solitário leva uma sociedade inteira dentro de si: o solitário é multidão. E daqui deriva a sua sociedade. Ninguém tem uma personalidade tão acusada como aquele que junta em si mais generalidade, aquele que leva no seu interior mais dos outros. O génio, foi dito e convém repeti-lo frequentemente, é uma multidão. É a multidão individualizada, e é um povo feito pessoa. Aquele que tem mais de próprio é, no fundo, aquele que tem mais de todos, é aquele em quem melhor se une e concentra o que é dos outros.
(...) O que de melhor ocorre aos homens é o que lhes ocorre quando estão sozinhos, aquilo que não se atrevem a confessar, não já ao próximo mas nem sequer, muitas vezes, a si mesmos, aquilo de que fogem, aquilo que encerram em si quando estão em puro pensamento e antes de que possa florescer em palavras. E o solitário costuma atrever-se a expressá-lo, a deixar que isso floresça, e assim acaba por dizer o que todos pensam quando estão sozinhos, sem que ninguém se atreva a publicá-lo. O solitário pensa tudo em voz alta, e surpreende os outros dizendo-lhes o que eles pensam em voz baixa, enquanto querem enganar-se uns aos outros, pretendendo acreditar que pensam outra coisa, e sem conseguir que alguém acredite.Miguel de Unamuno, in 'Solidão'
sábado, 8 de maio de 2021
domingo, 25 de abril de 2021
sexta-feira, 23 de abril de 2021
Acredita-se ter encontrado um meio de tornar a vida deliciosa através da bajulação. Um homem simples que apenas diz a verdade é visto como o perturbador do prazer público. Foge-se dele porque não agrada a ninguém; foge-se da verdade que ele enuncia, porque é amarga; foge-se da sinceridade que proclama porque apenas traz frutos selvagens; tem-se receio dela porque humilha, porque revolta o orgulho que é a mais estimada das paixões, porque é um pintor fiel que nos faz ver quão disformes somos.
Não admira que seja tão rara: em toda a parte (a sinceridade) é perseguida e proscrita. Coisa maravilhosa, ela encontra a custo um refúgio no seio da amizade.A que se deve que já não haja verdadeira amizade entre os homens? Que esse nome não seja mais do que uma armadilha que empregam com vileza para seduzir? «É, diz um poeta (Ovídio), porque já não existe sinceridade.»
Baron de Montesquieu, in 'Elogio da Sinceridade'
domingo, 18 de abril de 2021
Não me preocupa tanto qual eu seja para outrem como me preocupa qual eu seja em mim mesmo. Quero ser rico por mim, não por empréstimo. Os estranhos vêem apenas os acontecimentos e as aparências externas; cada qual pode ter um ar alegre exteriormente e por dentro estar cheio de febre e receio. Eles não vêem o meu coração; vêem apenas o meu comportamento. Tem-se razão em depreciar a hipocrisia que existe na guerra; pois o que é mais fácil para um homem oportunista do que esquivar-se dos perigos e fazer-se de bravo, tendo o ânimo repleto de frouxidão? Há tantos meios de evitar as ocasiões de arriscar-se pessoalmente que teremos enganado o mundo mil vezes antes de encetarmos um passo perigoso; e mesmo então, vendo-nos entravados, nesse momento bem sabemos encobrir o nosso jogo com um ar alegre e uma palavra serena, embora a alma nos trema interiormente.
E se alguém pudesse usar o anel de Platão, que tornava invisível quem o levasse no dedo e o virasse para a palma da mão, muitas pessoas amiúde se esconderiam quando mais é preciso apresentar-se e se arrependeriam de estar colocadas num lugar tão honroso, no qual a necessidade as torna seguras: Quem pode alegrar-se com falsas honrarias e temer a calúnia, senão o homem falso e mentiroso? (Horácio). Eis como todos esses juízos que se fazem sobre as aparências externas são enormemente incertos e duvidosos; e não há outra testemunha tão fiel quanto cada qual sobre si mesmo.Michel de Montaigne, in 'Ensaios'
segunda-feira, 12 de abril de 2021
Somos tão pouco presunçosos que gostaríamos de ser conhecidos da terra, mesmo das pessoas que vierem quando nós já cá não estivermos. Somos tão pouco vãos que a estima de cinco pessoas, vá lá seis, nos diverte e nos honra.
(...) A modéstia é tão natural no coração do homem que um operário tem o cuidado de não se gloriar e quer ter os seus admiradores. Os filósofos querem-nos. Os poetas mais do que ninguém! Os que escrevem em louvor da glória querem ter a glória de ter escrito bem. Os que lêem querem a glória de ter lido. Eu, que escrevo isto, glorio-me de ter esse desejo. Aqueles que o lerem hão-de gloriar-se também.Isidore de Lautréamont, in 'Poesias'
sábado, 10 de abril de 2021
sexta-feira, 9 de abril de 2021
O homem que não tiver virtude própria sempre invejará a virtude dos outros. A razão disso é que a alma humana nutre-se do bem próprio ou do mal alheio, e aquela que carece de um, aspira a obter o outro, e aquele que está longe de esperar obter méritos de outrem, procurará nivelar-se com ele, destruindo-lhe a fortuna.
As pessoas que são curiosas e indiscretas são geralmente invejosas; porque conhecer muito a respeito da vida alheia não pode resultar do que concerne os próprios negócios. Isso deve provir, portanto, de tomar uma espécie de prazer teatral a admirar a fortuna dos outros. Aliás, quem não se ocupa senão dos próprios negócios não encontra matéria para invejas. Porque a inveja é uma paixão calaceira, isto é, passeia pelas ruas e não fica em casa.Francis Bacon, in 'Ensaios - Da Inveja'
quarta-feira, 7 de abril de 2021
Não se espante, por conseguinte, o leitor de que um qualquer idiota possa, ao mesmo tempo, ser feliz. É, até, assaz corrente. Há idiotas que se consideram inteligentíssimos, o que é uma forma muito comum de idiotia, e extraem dessa certeza alguma felicidade, aquela maneira de felicidade que consiste em uma pessoa se julgar muito superior às que a rodeiam.
O leitor gostaria de ser ministro ou secretário de Estado? Pois fique sabendo que há quem goste, embora - será justo dizê-lo - também há quem o seja a contra-gosto, por dever partidário ou patriótico.Os idiotas, de modo geral, não fazem um mal por aí além, mas, se detêm poder e chegam a ser felizes em demasia podem tornar-se perigosos. É que um idiota, ainda por cima feliz, ainda por cima como poder, é, quase sempre, um perigo.
Oremos.
Oremos para que o idiota só muito raramente se sinta feliz. Também, coitado, há-de ter, volta e meia, que sentir-se qualquer coisa.
Alexandre O'Neill, in "Uma Coisa em Forma de Assim"
domingo, 4 de abril de 2021
sábado, 3 de abril de 2021
quarta-feira, 31 de março de 2021
Queres ter uma ideia do amor, vê os pardais do teu jardim; vê os teus pombos; contempla o touro que se leva à tua vitela; olha esse orgulhoso cavalo que dois valetes teus conduzem à égua em paz que o espera, e que desvia a cauda para recebê-lo; vê como os seus olhos cintilam; ouve os seus relinchos; contempla os seus saltos, camabalhotas, orelhas eriçadas, boca que se abre com pequenas convulsões, narinas que se inflam, sopro inflamado que delas sai, crinas que se revolvem e flutuam, movimento imperioso com o qual o cavalo se lança para o objecto que a natureza lhe destinou; mas não tenhas inveja, e pensa nas vantagens da espécie humana: elas compensam com amor todas as que a natureza deu aos animais, força, beleza, ligeireza, rapidez. Há até mesmo animais que não sabem o que é o gozo. Os peixes escamados são privados dessa doçura: a fêmea lança no lodo milhões de ovos; o macho que os encontra passa sobre eles e fecunda-os com a sua semente, sem saber a que fêmea eles pertencem. A maior parte dos animais que copulam só têm prazer por um sentido; e, assim que esse apetite é satisfeito, tudo se extingue. Nenhum animal, com excepção de ti, conhece os entrelaçamentos; todo o teu corpo é sensível; os teus lábios, sobretudo, gozam de uma volúpia que nada cansa, e esse prazer só pertence à tua espécie; enfim, tu podes a qualquer tempo entregares-te ao amor, os animais têm o seu tempo específico. (...) Por isso, estás acima dos animais; mas, se gozas de tantos prazeres que eles ignoram, em compensação quantas tristezas os animais não fazem ideia!
Voltaire, in 'Dicionário Filosófico'
Aí residia a sua força e a sua virtude, aí era invergável e incorruptível, aí o seu carácter era firme e rectilíneo. No entanto, esta virtude trazia estreitamente ligados a si também o seu sofrimento e o seu destino.
Acontecia-lhe o que a todos acontece: aquilo que por impulso da sua mais íntima natureza demandava e em que se empenhava com a maior pertinácia, era-lhe concedido, mas ultrapassando aquilo que ao homem é benéfico. O que começava por ser sonho e felicidade, redundava em amargo destino. O homem do poder destrói-se pelo poder, o homem do dinheiro, pelo dinheiro, o subserviente pelo servir, o sequioso de prazer pela luxúria.Hermann Hesse, in "O Lobo das Estepes"
terça-feira, 30 de março de 2021
É certo que o homem fala a si mesmo; não há um único ser racional que o não tenha experimentado. Pode-se até dizer que o mistério do Verbo nunca é mais magnífico do que quando, no interior do homem, vai do pensamento à consciência, e volta da consciência ao pensamento. (...) Diz, fala, exclama cada um consigo mesmo, sem que seja quebrado o silêncio exterior. Há um grande tumulto; tudo fala em nós, excepto a boca. As realidades da alma, por não serem visíveis e palpáveis, nem por isso deixam de ser também realidades.
Victor Hugo, in 'Os Miseráveis'