sábado, 31 de julho de 2021

 Um homem louco é aquele cuja maneira de pensar e agir não se coaduna com a maioria dos seus contemporâneos. A sanidade mental é uma questão de estatística. Aquilo que a maioria dos Homens faz em qualquer dado lugar e período é a coisa ajuizada e normal a fazer. Esta é a definição de sanidade mental na qual baseamos a nossa prática social. Para nós, aqui e agora, são muitos os de mentalidade sã e poucos os loucos. Mas os julgamentos, aqui e agora, são por sua natureza provisórios e relativos. O que nos parece sanidade mental, a nós, porque é o comportamento de muitos, pode parecer, sub specie oeternitalis, uma loucura. Nem é preciso invocar a eternidade como testemunho. A História é suficiente. A maioria auto-intitulada de mentalmente sã, em qualquer dado momento, pode parecer ao historiador, que estudou os pensamentos e acções de inumeráveis mortos, uma escassa mão-cheia de lunáticos. Considerando o assunto de outro ponto de vista, o psicólogo pode chegar à mesma conclusão. Ele sabe que a mente consiste de tais e tais elementos, que existem e devem ser tidos em conta. Se um homem tenta viver como se certos destes elementos constituintes do seu ser não existissem, está a tentar viver, num sentido psicológico absoluto, anormalmente. Está a tentar ser louco; e tentar ser louco é insânia.

Aplicando estes dois testes, o do historiador e o do psicólogo, à maioria mentalmente sã do Ocidente contemporâneo, que verificamos? Verificamos que os ideais e a filosofia da vida agora geralmente aceites são totalmente diferentes dos ideais e da filosofia aceite em quase todas as outras épocas. O Sr. Buck e os milhões por quem ele fala estão, esmagadoramente, em minoria. Os incontáveis mortos preferem a sentença a seu respeito: estão loucos. Os psicólogos confirmam o seu veredicto. O êxito – «a deusa-cadela, Êxito» na frase de William James – exige estranhos sacrifícios daqueles que a adoram. Nada menos do que automutilação espiritual pode obter os seus favores. O homem coordenado para o êxito é um homem que foi forçado a deixar metade do seu espírito fora da sua personalidade. E se ele aceitar os ideais e a filosofia da vida que a deusa-cadela tem para oferecer, achar-se-á condenado, ou a uma estrénua irreflexão ou a um cinismo poeirento e descolorido. Nascido potencialmente são, ele aprende a sua loucura. “Porque todo o Homem”, como Sancho Pança observou, “é como o céu o fez, e algumas vezes muito pior do que isso” – algumas vezes, também, muito melhor; depende, em parte, dos seus próprios esforços, em parte das tradições, das crenças, dos códigos, da filosofia da vida que acontece ser corrente na sociedade em que ele nasceu. Onde esta herança social é uma loucura, o indivíduo naturalmente mais normal está moldado à semelhança de um louco. Em relação à sociedade em que vive, ele é, sem dúvida, normal, porque se parece com a maioria dos seus pares. Mas eles são todos, falando em absoluto, conjuntamente loucos.
A Natureza permanece inalterável, quaisquer que sejam os esforços conscientes feitos para a deformar. Os Homens podem negar a existência de uma parte do seu próprio espírito; mas o que é negado não é por isso destruído. Os elementos banidos vingam-se nos indivíduos, nas sociedades inteiras. Uma coisa apenas é absolutamente certa quanto ao futuro: que as nossas sociedades ocidentais não se manterão por muito tempo no seu presente estado. Ideais loucos e uma filosofia lunática da vida não são as melhores garantias de sobrevivência.

Aldous Huxley, in "Sobre a Democracia e Outros Estudos"

quinta-feira, 29 de julho de 2021

Itzhak Perlman: Brahms - Violin Concerto in D major, Op. 77

Inveja Justa e Injusta

 Quando a fortuna envia a alguém bens de que ele é verdadeiramente indigno, e a inveja só é excitada em nós porque amando naturalmente a justiça ficamos contrariados que ela não seja observada na distribuição desses bens, trata-se de um zelo que pode ser desculpável; principalmente quando o bem que invejamos de outros é de tal natureza que pode converter-se em mal nas mãos deles, como se for algum cargo ou ofício em cujo exercício eles possam comportar-se mal.

Mesmo quando desejamos para nós o mesmo bem e somos impedidos de tê-lo, porque outros que são menos merecedores o possuem, isto torna mais violenta tal paixão; e ela não deixa de ser desculpável, contanto que o ódio que contém se relacione somente com a má distribuição do bem que se inveja, e não com as pessoas que o possuem e distribuem.
Mas há poucos que sejam tão justos, e tão generosos a ponto de não ter ódio por aqueles que os precederam na obtenção de um bem que não é comunicável a várias pessoas e que eles haviam desejado para si mesmos, embora os que os obtiveram sejam tanto ou mais merecedores. E o que habitualmente é mais invejado é a glória, pois embora a dos outros não impeça que possamos almejá-la, no entanto às vezes torna o seu acesso mais difícil e encarece-lhe o valor.

René Descartes, in 'As Paixões da Alma'

Massenet: Thaïs: Méditation