quarta-feira, 10 de março de 2021

 A minha susceptibilidade a certo tipo de sustos (medo) era grande. Na rua, um homem caminhando na minha direcção, isto é, na direcção contrária, tirou da algibeira um lenço à minha frente; comecei de imediato a pensar, inconscientemente, acho, que estava a tirar uma arma ou um revólver.

A minha vista curta — nem sempre, mas excessivamente no que respeita aos traços das pessoas, aos gestos — afectava o meu cérebro desequilibrado. A minha imaginação interpretava mal o carácter dos seus olhares. Distorcia, não sabia explicar porquê, a intenção e o significado dos seus gestos. O meu próprio sentido de audição era débil; aplicava a mim próprio, retorcendo-as, as palavras que captava. Via em cada palavra um termo destinado a ofender-me, em cada frase, mal apanhada, a sombra e o vislumbre de um insulto.
As pessoas na rua riam-se: riam-se de mim. A minha vista débil não me deixava destruir esta ilusão. Não me atrevia a pôr os óculos que tinha no bolso, pois temia que as minhas desconfianças se revelassem fundadas.
Ansiava por ter uma grande auto-estima, para que a minha pessoa me fizesse esquecer de mim próprio. Desejava, oh, como desejava! — o impulso de me dedicar aos outros para que eles me fizessem esquecer de mim. Ansiava por morrer, por me esvair da minha personalidade, por deixar a vida esvair-se. Ansiava livrar-me de tudo, ir para longe, para muito longe. Desejava nunca mais olhar para o rosto dos homens.
Nessas horas de intensa dor, desejava, muitas vezes, ter um amigo que pudesse corresponder-me: o meu maior sonho era ter um cão. Sonhava frequentemente ter como companheira uma criança, encontrada na rua, abandonada. Mas nas minhas agonias mais profundas, nas minhas crises mais agudas de dor, não desejava nada senão esquecer. A terra, a natureza, os homens, as formigas, os bichos, os pássaros — desejava estar em sossego longe deles. Ansiava por um sono que nada na vida pode dar. Os meus pensamentos relacionavam-se com a morte, com a completa mortalidade da alma. Ao caminhar nos passeios, parecia-me que despertava risos, que era objecto de troça.
[...] O meu ouvido, meio fraco, revelou-se de uma extrema acuidade para conversas que se desenrolavam atrás de mim. As palavras que apanhava, interpretava-as mal para meu próprio desgosto e sofrimento.
Fernando Pessoa - manuscrito, original em Inglês (1904-1908)

Gabriel Silva "Mundo"

 Actualmente, tem-se a pretensão de que a mulher é respeitada. Uns cedem-lhe o lugar, apanham-lhe o lenço: outros reconhecem-lhe o direito de exercer todas as funções, de tomar parte na administração, etc.; mas a opinião que têm dela é sempre a mesma - um instrumento de prazer. E ela sabe-o. Isso em nada difere da escravatura. A escravatura mais não é do que a exploração por uns do trabalho forçado da maioria. Assim, para que deixe de haver escravatura é necessário que os homens cessem de desejar usufruir o trabalho forçado de outrem e considerem semelhante coisa como um pecado ou vergonha. Entretanto, eles suprimem a forma exterior da escravatura, depois imaginam, persuadem-se de que a escravatura está abolida mas não vêem, não querem ver que ela continua a existir porque as pessoas procedem sempre de maneira idêntica e consideram bom e equitativo aproveitar o trabalho alheio. E desde que isso é julgado bom, torna-se inveitável que apareçam homens mais fortes ou mais astutos dispostos a passar à acção. A escravatura da mulher reside unicamente no facto de os homens desejarem e julgarem bom utilizá-la como instrumento de prazer. Hoje em dia, emancipam-na ou concedem-lhe todos os direitos iguais aos do homem, mas continua-se a considerá-la como um instrumento de prazer, a educá-la nesse sentido desde a infância e por meio da opinião pública. Por isso ela continua uma escrava, humilhada, pervertida, e o homem mantém-se um corruptor possuidor de escravos.


Leon Tolstoi, in 'Sonata a Kreutzer'