quarta-feira, 29 de dezembro de 2010
quinta-feira, 23 de dezembro de 2010
sábado, 18 de dezembro de 2010
sexta-feira, 26 de novembro de 2010
segunda-feira, 22 de novembro de 2010
segunda-feira, 15 de novembro de 2010
quinta-feira, 11 de novembro de 2010
A Virtude Pura não Existe nos Dias de Hoje
Numa época tão doente como esta, quem se ufana de aplicar ao serviço da sociedade uma virtude genuína e pura, ou não sabe o que ela é, já que as opiniões se corrompem com os costumes (de facto, ouvi-os retratarem-na, ouvi a maior parte glorificar-se do seu comportamento e formular as suas regras: em vez de retratarem a virtude, retratam a pura injustiça e o vício, e apresentam-na assim falsificada para educação dos príncipes), ou, se o sabe, ufana-se erradamente e, diga o que disser, faz mil coisas que a sua consciência reprova.
(...) Em tal aperto, a mais honrosa marca de bondade consiste em reconhecer o erro próprio e o alheio, empregar todas as forças a resistir e a obstar à inclinação para o mal, seguir contra a corrente dessa tendência, esperar e desejar que as coisas melhorem.
Michel de Montaigne, in 'Ensaios - Da Vaidade'
sexta-feira, 5 de novembro de 2010
quarta-feira, 3 de novembro de 2010
segunda-feira, 1 de novembro de 2010
sexta-feira, 29 de outubro de 2010
quarta-feira, 27 de outubro de 2010
domingo, 24 de outubro de 2010
quarta-feira, 20 de outubro de 2010
Barrow-on-Furness
I
Sou vil, sou reles, como toda a gente
Não tenho ideais, mas não os tem ninguém.
Quem diz que os tem é como eu, mas mente.
Quem diz que busca é porque não os tem.
É com a imaginação que eu amo o bem.
Meu baixo ser porém não mo consente.
Passo, fantasma do meu ser presente,
Ébrio, por intervalos, de um Além.
Como todos não creio no que creio.
Talvez possa morrer por esse ideal.
Mas, enquanto não morro, falo e leio.
Justificar-me? Sou quem todos são...
Modificar-me? Para meu igual?...
— Acaba já com isso, ó coração!
II
Deuses, forças, almas de ciência ou fé,
Eh! Tanta explicação que nada explica!
Estou sentado no cais, numa barrica,
E não compreendo mais do que de pé.
Por que o havia de compreender?
Pois sim, mas também por que o não havia?
Água do rio, correndo suja e fria,
Eu passo como tu, sem mais valer...
Ó universo, novelo emaranhado,
Que paciência de dedos de quem pensa
Em outras cousa te põe separado?
Deixa de ser novelo o que nos fica...
A que brincar? Ao amor?, à indif'rença?
Por mim, só me levanto da barrica.
III
Corre, raio de rio, e leva ao mar
A minha indiferença subjetiva!
Qual "leva ao mar"! Tua presença esquiva
Que tem comigo e com o meu pensar?
Lesma de sorte! Vivo a cavalgar
A sombra de um jumento. A vida viva
Vive a dar nomes ao que não se ativa,
Morre a pôr etiquetas ao grande ar...
Escancarado Furness, mais três dias
Te aturarei, pobre engenheiro preso
A sucessibilíssimas vistorias...
Depois, ir-me-ei embora, eu e o desprezo
(E tu irás do mesmo modo que ias),
Qualquer, na gare, de cigarro aceso...
IV
Conclusão a sucata!... Fiz o cálculo,
Saiu-me certo, fui elogiado...
Meu coração é um enorme estrado
Onde se expõe um pequeno animálculo...
A, microscópio de desilusões
Findei, prolixo nas minúcias fúteis...
Minhas conclusões práticas, inúteis...
Minhas conclusões teóricas, confusões...
Que teorias há para quem sente
O cérebro quebrar-se, como um dente
Dum pente de mendigo que emigrou?
Fecho o caderno dos apontamentos
E faço riscos moles e cinzentos
Nas costas do envelope do que sou...
V
Há quanto tempo, Portugal, há quanto
Vivemos separados! Ah, mas a alma,
Esta alma incerta, nunca forte ou calma,
Não se distrai de ti, nem bem nem tanto.
Sonho, histérico oculto, um vão recanto...
O rio Furness, que é o que aqui banha,
Só ironicamente me acompanha,
Que estou parado e ele correndo tanto...
Tanto? Sim, tanto relativamente...
Arre, acabemos com as distinções,
As subtilezas, o interstício, o entre,
A metafísica das sensações —
Acabemos com isto e tudo mais...
Ah, que ânsia humana de ser rio ou cais!
Álvaro de Campos, in "Poemas"
Heterónimo de Fernando Pessoa
segunda-feira, 18 de outubro de 2010
Algo que, realmente, surpreende
segunda-feira, 11 de outubro de 2010
domingo, 10 de outubro de 2010
O «Ensina-me»
A canivete e nanquim a figura dum velho
A coçar-se no peito por causa da sarna
Mas de olhar implorativo porque esperava que o ensinassem.
Uma segunda tábua pra o outro canto do quarto,
Que devia representar um moço a ensiná-lo,
Nunca mais foi feita.
Quando era novo tinha a esperança
De encontrar um velho que se deixasse ensinar.
Quando for velho, espero
Que se encontre um moço e eu
Me deixe ensinar.
Bertold Brecht, in 'Lendas, Parábolas, Crónicas, Sátiras e outros Poemas'
Tradução de Paulo Quintela
O Grande Educador
É além de tudo essencial que a escola se não separe do mundo; não há escolas e oficinas; há um certo género de oficinas em que trabalham crianças nas tarefas que lhes são adequadas e lhes vão facilitando o desenvolvimento do corpo e do espírito; vão colaborando no que podem e no que sabem para que a vida melhore. Ninguém fugirá da escola e a olhará como um horror no dia em que a deixemos de conceber como o lugar a que se vai para receber uma lição, para a considerarmos como o ponto de condições óptimas para que uma criança efectivamente dê a sua ajuda a todos os que estão procurando libertar a condição humana do que nela há de primitivo; não se veja no aluno o ser inferior e não preparado a que se põe tutor e forte adubo; isso é o diálogo entre o jardineiro e o feijão; outra ideia havemos de fazer das possibilidades do homem e do arranjo da vida; que a criança se não deixe nunca de ver como elemento activo na máquina do mundo e de reconhecer que a comunidade está aproveitando o seu trabalho; de número na classe e de fixador de noções temos de a passar a cidadão.
O grande educador não pensa na escola pela escola, como o grande artista não aceita a arte pela arte; é incapaz de se encerrar na relativa estreiteza de uma vida de ensino; a escola, de tudo o que lhe oferecia o universo, é apenas o ponto a que dedicou maior interesse; mas é-lhe impossível furtar-se a mais larga actividade. De outro modo: trabalha com ideias gerais; não dirá que esta escola é o seu mundo, mas que esta escola é parte indispensável do seu mundo. E quererá também que toda a oficina passe a ser uma escola; que haja o trabalho proporcionado e alegre, amorosamente feito, porque se sabe necessário ao progresso, levado a cabo numa atitude de artista e de voluntário, disciplinado remador na jangada comum; que se não esmaguem as faculdades superiores do operário sob o peso e a monotonia de tarefas sem interesse e sem vida; que se faça a clara distinção entre o homem e a máquina; que, finalmente, se ajude o trabalhador a encontrar na sua ocupação, em todas as ideias que a cercam e a condicionam ou que ela própria provoca, o Bem Supremo da sua vida e da vida dos outros.
Agostinho da Silva, in 'Considerações'
Os Convencidos da Vida
Todos os dias os encontro. Evito-os. Às vezes sou obrigado a escutá-los, a dialogar com eles. Já não me confrangem. Contam-me vitórias. Querem vencer, querem, convencidos, convencer. Vençam lá, à vontade. Sobretudo, vençam sem me chatear.
Mas também os aturo por escrito. No livro, no jornal. Romancistas, poetas, ensaístas, críticos (de cinema, meu Deus, de cinema!). Será que voltaram os polígrafos? Voltaram, pois, e em força.
Convencidos da vida há-os, afinal, por toda a parte, em todos (e por todos) os meios. Eles estão convictos da sua excelência, da excelência das suas obras e manobras (as obras justificam as manobras), de que podem ser, se ainda não são, os melhores, os mais em vista.
Praticam, uns com os outros, nada de genuinamente indecente: apenas um espelhismo lisonjeador. Além de espectadores, o convencido precisa de irmãos-em-convencimento. Isolado, através de quem poderia continuar a convencer-se, a propagar-se? (...) No corre-que-corre, o convencido da vida não é um vaidoso à toa. Ele é o vaidoso que quer extrair da sua vaidade, que nunca é gratuita, todo o rendimento possível. Nos negócios, na política, no jornalismo, nas letras, nas artes. É tão capaz de aceitar uma condecoração como de rejeitá-la. Depende do que, na circunstância, ele julgar que lhe será mais útil.
Para quem o sabe observar, para quem tem a pachorra de lhe seguir a trajectória, o convencido da vida farta-se de cometer «gaffes». Não importa: o caminho é em frente e para cima. A pior das «gaffes», além daquelas, apenas formais, que decorrem da sua ignorância de certos sinais ou etiquetas de casta, de classe, e que o inculcam como um arrivista, um «parvenu», a pior das «gaffes» é o convencido da vida julgar-se mais hábil manobrador do que qualquer outro.
Daí que não seja tão raro como isso ver um convencido da vida fazer plof e descer, liquidado, para as profundas. Se tiver raça, pôr-se-á, imediatamente, a «refaire surface». Cá chegado, ei-lo a retomar, metamorfoseado ou não, o seu propósito de se convencer da vida - da sua, claro - para de novo ser, com toda a plenitude, o convencido da vida que, afinal... sempre foi.
Alexandre O'Neill, in "Uma Coisa em Forma de Assim"
quarta-feira, 6 de outubro de 2010
segunda-feira, 4 de outubro de 2010
sexta-feira, 1 de outubro de 2010
quinta-feira, 30 de setembro de 2010
terça-feira, 28 de setembro de 2010
segunda-feira, 27 de setembro de 2010
quinta-feira, 23 de setembro de 2010
terça-feira, 21 de setembro de 2010
domingo, 19 de setembro de 2010
Idade Subjectiva
— Se ambos os teus pais tivessem nascido em 1958, que idade dizias que eles tinham?
— Dependia...
— Dependia de quê?
— De perguntarmos ao meu pai ou à minha mãe...
Não Diga o Meu Espelho que Envelheço
se a juventude e tu têm igual data,
mas se os sulcos do tempo em ti conheço
então devo expiar no que me mata.
Tanta beleza te recobre e deu
tais galas a vestir a meu coração,
que vive no teu peito e o teu no meu.
Mais velho do que tu serei então?
Portanto, meu amor, cuida de ti
como eu, não por mim, por ti somente
te cuido o coração, que guardo aqui
como à criança a ama diligente.
Não contes com o teu se o meu morrer.
Deste-me o teu e o não vou devolver.
William Shakespeare, in "Sonetos (22)"
É por ter Espírito que me Aborreço
É preciso esconjurar, da forma que nos for possível, este diabo de vida que não sei porque é que nos foi dada e que se torna tão facilmente amarga se não opusermos ao tédio e aos aborrecimentos uma vontade de ferro. É preciso, numa palavra, agitar este corpo e este espírito que se delapidam um ao outro na estagnação e numa indolência que se confunde com um torpor. É preciso passar, necessariamente, do descanso ao trabalho - e reciprocamente: só assim estes parecerão, ao mesmo tempo, agradáveis e salutares. Um desgraçado que trabalhe sem cessar, sob o peso de tarefas inadiáveis, deve ser, sem dúvida, extremamente infeliz, mas um indivíduo que não faça mais do que divertir-se não encontrará nas suas distracções nem prazer nem tranquilidade; sente que luta contra o tédio e que este o prende pelos cabelos - como se fosse um fantasma que se colocasse sempre por detrás de cada distracção e espreitasse por cima do nosso ombro.
Não julgue, cara amiga, que eu só porque trabalho regularmente estou isento das investidas deste terrível inimigo; penso que, quando se tem uma certa disposição de espírito, é preciso termos uma imensa energia de forma a não nos deixarmos absorver e conseguir escapar, graças à nossa força de vontade, à melancolia em que caímos continuamente. O prazer que sinto, neste momento, em dialogar consigo acerca deste sentimento é mais uma prova de como eu me procuro agarrar, avidamente, sempre que tenho forças para isso, a todas as oportunidades para ocupar o espírito (ainda que seja referindo-me a este tédio, que procuro combater).
Sempre pensei que havia tempo a mais. Atribuo em grande parte este sentimento ao prazer que quase sempre encontrei no próprio trabalho: os verdadeiros ou pretensos prazeres que se lhe sucediam não contrastavam talvez muito com a fadiga que me comunicava o trabalho - fadiga que a maior parte dos homens sente duramente. Não tenho dificuldade em imaginar o prazer que deve sentir nas suas horas de repouso essa multidão de homens que vemos vergados sob trabalhos desencorajadores - e não me refiro apenas aos pobres, que têm de ganhar o seu pão quotidiano, mas também aos advogados, aos funcionários, submersos pela papelada e ocupados com encargos fastidiosos ou que não lhe dizem respeito.
No entanto, também é verdade que a maior parte desses indivíduos não têm problemas com a imaginação e vêem nas suas ocupações maquinais uma maneira como qualquer outra de ocupar o tempo. E serão tanto menos infelizes quanto mais medíocres forem. Para me consolar, termino com este último axioma: que é por ter espírito que me aborreço.
Eugène Delacroix, in 'Diário'
sábado, 18 de setembro de 2010
sexta-feira, 17 de setembro de 2010
quinta-feira, 16 de setembro de 2010
Pobre Velha Música!
Não sei por que agrado,
Enche-se de lágrimas
Meu olhar parado.
Recordo outro ouvir-te,
Não sei se te ouvi
Nessa minha infância
Que me lembra em ti.
Com que ânsia tão raiva
Quero aquele outrora!
E eu era feliz? Não sei:
Fui-o outrora agora.
Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"
A Necessidade de Ser Insultado
É uma experiência muito simples que acontece quase diáriamente, e ainda para mais quando existe algum outro segredo, uma aflição no coração, para o qual se deseja dar uma expressão verbal mas que não se consegue.
Fiodor Dostoievski, in 'Humilhados e Ofendidos'
quarta-feira, 15 de setembro de 2010
terça-feira, 14 de setembro de 2010
Mensagem a Alunos e Professores
«Queridos estudantes!
Regozijo-me por vos ver hoje diante de mim, alegre juventude de um país abençoado.
Lembrai-vos de que as coisas maravilhosas que ireis aprender nas vossas escolas são a obra de muitas gerações, levada a cabo por todos os países do mundo, à custa de muito entusiasmo, muito esforço e muita dor. Tudo é depositado nas vossas mãos, como uma herança, para que a aceitem, honrem, desenvolvam e a transmitam fielmente um dia aos vossos filhos. Assim nós, embora mortais, somos imortais nas obras duradouras que criamos em comum.
Se tiverem esta ideia sempre em mente, encontrarão algum sentido na vida e no trabalho e poderão formar uma opinião justa em relação aos outros povos e aos outros tempos.»
Albert Einstein, in 'Como Vejo o Mundo'
Acaso
Mas não, não é aquela.
A outra era noutra rua, noutra cidade, e eu era outro.
Perco-me subitamente da visão imediata,
Estou outra vez na outra cidade, na outra rua,
E a outra rapariga passa.
Que grande vantagem o recordar intransigentemente!
Agora tenho pena de nunca mais ter visto a outra rapariga,
E tenho pena de afinal nem sequer ter olhado para esta.
Que grande vantagem trazer a alma virada do avesso!
Ao menos escrevem-se versos.
Escrevem-se versos, passa-se por doido, e depois por gênio, se calhar,
Se calhar, ou até sem calhar,
Maravilha das celebridades!
Ia eu dizendo que ao menos escrevem-se versos...
Mas isto era a respeito de uma rapariga,
De uma rapariga loira,
Mas qual delas?
Havia uma que vi há muito tempo numa outra cidade,
Numa outra espécie de rua;
E houve esta que vi há muito tempo numa outra cidade
Numa outra espécie de rua;
Por que todas as recordações são a mesma recordação,
Tudo que foi é a mesma morte,
Ontem, hoje, quem sabe se até amanhã?
Um transeunte olha para mim com uma estranheza ocasional.
Estaria eu a fazer versos em gestos e caretas?
Pode ser... A rapariga loira?
É a mesma afinal...
Tudo é o mesmo afinal ...
Só eu, de qualquer modo, não sou o mesmo, e isto é o mesmo também afinal.
Álvaro de Campos, in "Poemas"
segunda-feira, 13 de setembro de 2010
domingo, 12 de setembro de 2010
O Grande Engano da Mediocridade
(Padre) Vasco Pinto de Magalhães, in 'Não Há Soluções, Há Caminhos'
Miseria Occulta
Vem depois a noute escura;
E o pobre astro que ali móra,
Não abandona a costura!
Para uns a vida é d'abrolhos!
Para outros mouta de lyrios!
Bem o revelam seus olhos,
Pisados pelos martyrios!
Miseria afugenta tudo!
Miseria tem dons funestos!
Quem é que gaba o velludo
D'aquelles olhos honestos!...
Ninguem seus olhos brilhantes
Descobre n'essas alturas...
E aquellas formas tão puras,
E aquellas mãos elegantes!
Sempre á costura inclinada!
Morra o sol ou surja a lua
Nunca vi descer á rua
Aquella loura encantada!
Aquelle lyrio dobrado
Por que assim vive escondido!
Eu bem sei!--não tem calçado!
E é muito usado o vestido!
Por isso não tem porvir
Morrerá virgem e nova,
E aguarda-a bem cedo a cova...
Que eu bem a ouço tossir!
Miseria afugenta tudo!
Miseria tem dons funestos!
Quem é que gaba o veludo
D'aquelles olhos honestos!
Pobre flor desfalecida
Tão nova e ainda em botão!
Como teve estreita a vida,
Terá estreito o caixão!
António Gomes Leal, in 'Claridades do Sul'
sexta-feira, 10 de setembro de 2010
Desporto e Pedagogia
Diz ele que não sei ler
Isso que tem? Cá na aldeia
Não se arranjam dúzia e meia
Que saibam ler e escrever.
II
P'ra escolas não há bairrismo,
Não há amor nem dinheiro.
Por quê? Porque estão primeiro
O Futebol e o Ciclismo!
III
Desporto e pedagogia
Se os juntassem, como irmãos,
Esse conjunto daria,
Verdadeiros cidadãos!
Assim, sem darem as mãos,
O que um faz, outro atrofia.
IV
Da educação desportiva,
Que nos prepara p'ra vida,
Fizeram luta renhida
Sem nada de educativa.
V
E o povo, espectador em altos gritos,
Provoca, gesticula, a direito e torto,
Crendo assim defender seus favoritos
Sem lhe importar saber o que é desporto.
VI
Interessa é ganhar de qualquer maneira.
Enquanto em campo o dever se atropela,
Faz-se outro jogo lá na bilheiteira,
Que enche os bolsinhos aos que vivem dela.
VII
Convém manter o Zé bem distraído
Enquanto ele se entrega à diversão,
Não pode ver por quantos é comido
E nem se importa que o comam, ou não.
VIII
E assim os ratos vão roendo o queijo
E o Zé, sem ver que é palerma, que é bruto,
De vez em quando solta o seu bocejo,
Sem ter p'ra ceia nem pão, nem conduto.
António Aleixo, in "Este Livro que Vos Deixo..."
Escola
"Uma Campanha Alegre"
Queiroz , Eça
quinta-feira, 9 de setembro de 2010
Amigo
Inaugurámos a palavra «amigo».
«Amigo» é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece,
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!
«Amigo» (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
«Amigo» é o contrário de inimigo!
«Amigo» é o erro corrigido,
Não o erro perseguido, explorado,
É a verdade partilhada, praticada.
«Amigo» é a solidão derrotada!
«Amigo» é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
«Amigo» vai ser, é já uma grande festa!
Alexandre O'Neill, in 'No Reino da Dinamarca'
A Amizade Verdadeira e Genuína
A amizade verdadeira e genuína pressupõe uma participação intensa, puramente objectiva e completamente desinteressada no destino alheio; participação que, por sua vez, significa identificarmo-nos de facto com o amigo. Ora, o egoísmo próprio à natureza humana é tão contrário a tal sentimento, que a amizade verdadeira pertence àquelas coisas que não sabemos se são mera fábula ou se de facto existem em algum lugar, como as serpentes marinhas gigantes. Todavia, há muitas relações entre os homens que, embora se baseiem essencialmente em motivos egoístas e ocultos de diversos tipos, passam a ter um grão daquela amizade verdadeira e genuína, o que as enobrece ao ponto de poderem, com certa razão, ser chamadas de amizade nesse mundo de imperfeições. Elas elevam-se muito acima dos vínculos ordinários, cuja natureza é tal, que não trocaríamos mais nenhuma palavra com a maioria dos nossos bons conhecidos, se ouvíssemos como falam de nós na nossa ausência.
Arthur Schopenhauer, in 'Aforismos para a Sabedoria de Vida'
quarta-feira, 8 de setembro de 2010
terça-feira, 7 de setembro de 2010
Queremos Homens Completos ou Meros Cidadãos?
A insistência nas qualidades socialmente valiosas da personalidade, com exclusão de todas as outras, derrota finalmente os seus próprios fins. O actual desassossego, descontentamento e incerteza de propósitos testemunham a veracidade disto. Tentámos fazer homens bons cidadãos de estados industriais altamente organizados: só conseguimos produzir uma colheita de especialistas, cujo descontentamento em não serem autorizados a ser homens completos faz deles cidadãos extremamente maus. Há toda a razão para supor que o mundo se tornará ainda mais completamente tecnicizado, ainda mais complicadamente arregimentado do que é presentemente; que graus cada vez mais elevados de especialização serão requeridos dos homens e mulheres individuais. O problema de reconciliar as reivindicações do homem e do cidadão tornar-se-á cada vez mais agudo. A solução desse problema será uma das principais tarefas da educação futura. Se irá ter êxito, e até mesmo se o êxito é possível, somente o evento poderá decidir.
Aldous Huxley, in "Sobre a Democracia e Outros Estudos"
Habilidade de Taxista
— Quer ver como ainda apanho aquela velhinha que está quase a chegar ao passeio? Acelera o carro, e quase a atingir a senhora, faz um ligeiro desvio para a esquerda; e quando vai a endireitar a direcção sente uma pancada no carro, ouve um corpo a cair, e pára o carro com uma travagem brusca, sem perceber o que se passava.
— Vocês, cá na cidade, afinal, têm muito pouca pontaria! Se eu não abrisse a porta, aqui do meu lado, você não conseguia apanhar a velhota.
Jardinagem
— Então, meu amiguinho, queres aprender a jardineiro?
— Não senhor...
— Então estás admirado de me ver trabalhar assim?
— Ná... Não senhor; era para ouvir o que o senhor abade dizia quando desse com o martelo nos dedos.
A Diferença entre um Penico e uma Panela
— Não — responde o outro, um pouco desconfiado.
— Ah! Então deve ser um pagode, em sua casa!
segunda-feira, 6 de setembro de 2010
Louvor do Aprender
Cujo tempo chegou
Nunca é tarde de mais!
Aprende o abc, não chega, mas
Aprende-o! E não te enfades!
Começa! Tens de saber tudo!
Tens de tomar a chefia!
Aprende, homem do asilo!
Aprende, homem na prisão!
Aprende, mulher na cozinha!
Aprende, sexagenária!
Tens de tomar a chefia!
Frequenta a escola, homem sem casa!
Arranja saber, homem com frio!
Faminto, pega no livro: é uma arma.
Tens de tomar a chefia.
Não te acanhes de perguntar, companheiro!
Não deixes que te metam patranhas na cabeça:
Vê c'os teus próprios olhos!
O que tu mesmo não sabes
Não o sabes.
Verifica a conta:
És tu que a pagas.
Põe o dedo em cada parcela,
Pergunta: Como aparece isto aqui?
Tens de tomar a chefia.
Bertold Brecht,
O Perigo da Leitura Excessiva
No entanto, como uma mola que, pela pressão constante acarretada por meio de um corpo estranho, acaba por perder a sua elasticidade, também o espírito perde a sua devido à imposição contínua de pensamentos alheios. E, do mesmo modo como uma alimentação excessiva causa indigestão e, consequentemente, prejudica o corpo inteiro, pode-se também sobrecarregar e sufocar o espírito com uma alimentação mental excessiva.
Pois, quanto mais se lê, menos vestígios deixa no espírito aquilo que se leu: a mente transforma-se em algo semelhante a uma lousa, à qual encontram-se escritas muitas palavras, umas sobre as outras. Por isso, não se chega à ruminação (ou melhor, o afluxo intenso e contínuo do conteúdo de novas leituras serve apenas para acelerar o esquecimento do que se leu anteriormente): entretanto, apenas esta permite assimilar o que foi lido, do mesmo modo como os alimentos nos nutrem não porque os comemos, mas porque os digerimos. Se, ao contrário, lê-se continuadamente, sem mais tarde pensar a respeito do que se leu, o conteúdo da leitura não cria raízes e, na maioria das vezes, perde-se. Em geral, o processamento da alimentação mental não difere daquele da alimentação corporal: apenas a cinquentésima parte do que se consome chega a ser assimilada; o restante é eliminado por meio da evaporação, da respiração ou similares.
A tudo isso soma-se o facto de que os pensamentos transportados para o papel não são nada além de uma pegada na areia: pode-se até ver o caminho percorrido; no entanto, para saber o que tal pessoa viu ao caminhar, é preciso usar os próprios olhos.
Arthur Schopenhauer, in 'Da Leitura e dos Livros'