domingo, 12 de setembro de 2010

Miseria Occulta

Bate nos vidros a aurora,

Vem depois a noute escura;

E o pobre astro que ali móra,

Não abandona a costura!



Para uns a vida é d'abrolhos!

Para outros mouta de lyrios!

Bem o revelam seus olhos,

Pisados pelos martyrios!



Miseria afugenta tudo!

Miseria tem dons funestos!

Quem é que gaba o velludo

D'aquelles olhos honestos!...



Ninguem seus olhos brilhantes

Descobre n'essas alturas...

E aquellas formas tão puras,

E aquellas mãos elegantes!



Sempre á costura inclinada!

Morra o sol ou surja a lua

Nunca vi descer á rua

Aquella loura encantada!



Aquelle lyrio dobrado

Por que assim vive escondido!

Eu bem sei!--não tem calçado!

E é muito usado o vestido!



Por isso não tem porvir

Morrerá virgem e nova,

E aguarda-a bem cedo a cova...

Que eu bem a ouço tossir!



Miseria afugenta tudo!

Miseria tem dons funestos!

Quem é que gaba o veludo

D'aquelles olhos honestos!



Pobre flor desfalecida

Tão nova e ainda em botão!

Como teve estreita a vida,

Terá estreito o caixão!



António Gomes Leal, in 'Claridades do Sul'

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