sábado, 28 de agosto de 2010

Ela Canta, Pobre Ceifeira

Ela canta, pobre ceifeira,

Julgando-se feliz talvez;

Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia

De alegre e anônima viuvez,



Ondula como um canto de ave

No ar limpo como um limiar,

E há curvas no enredo suave

Do som que ela tem a cantar.



Ouvi-la alegra e entristece,

Na sua voz há o campo e a lida,

E canta como se tivesse

Mais razões pra cantar que a vida.



Ah, canta, canta sem razão!

O que em mim sente ‘stá pensando.

Derrama no meu coração a tua incerta voz ondeando!



Ah, poder ser tu, sendo eu!

Ter a tua alegre inconsciência,

E a consciência disso! Ó céu!

Ó campo! Ó canção! A ciência



Pesa tanto e a vida é tão breve!

Entrai por mim dentro!

Tornai Minha alma a vossa sombra leve!

Depois, levando-me, passai!



Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"

Sem comentários: